Os irmãos Sequerra por Nelson Menda

No dia 24 de agosto de 1913, nasciam na cidade do Faro, sul de Portugal, os irmãos gêmeos Samuel e Joel Sequerra, filhos de um próspero empresário do ramo pesqueiro.

Os Sequerra tinham retornado no século XIX, provenientes da Inglaterra, e se orgulhavam do seu passado judaico-português. Duzentos anos antes, um Sequeira havia sido queimado pela inquisição em Portugal e seus três filhos tiveram de se refugiar na Inglaterra, passando a utilizar o sobrenome Sequerra. Com a morte do patriarca, e tendo de enfrentar a crise mundial de 1929, a empresa dos Sequerra foi à falência. Em 1933, a viúva mudou-se para Lisboa com seus cinco filhos,entre eles, os gêmeos Samuel e Joel, então com 20 anos.

Quem me relatou esses fatos foi o Salomão Sequerra, no seu apartamento no Leme, Rio de Janeiro, em março deste ano. Salomão nasceu em Lisboa em 1943 e mudou-se com os pais e os irmãos para o Brasil em 1958, aos 15 anos de idade. Ele é filho de Joel e sobrinho de Samuel, dois heróis anônimos do século XX.

Tudo começou em Barcelona, capital da Catalunha, Espanha, em 1942. Era a época conturbada da expansão militar da Alemanha nazista, incluída a França, país limítrofe à Espanha. Legiões de refugiados vagavam de um país ocupado para o outro, em busca desesperada da única rota possível de fuga: a fronteira franco-espanhola. A travessia dos Pirineus, a pé, levava alguns dias e era realizada sob as piores condições climáticas possíveis.

Os refugiados, além disso, precisavam driblar a vigilância da polícia francesa de fronteiras, que colaborava abertamente com a Gestapo, sem falar nos ladrões e contrabandistas que perambulavam pela região. A Espanha era considerada uma aliada de Hitler, com Franco ,  vitorioso na guerra civil, apoiado financeira, militar e ideologicamente pela Alemanha.

Barcelona, reduto republicano e anti-fascista, foi uma das cidades mais castigadas pelas falanges franquistas. O dialeto catalão estava proibido e até mesmo a sardana, dança folclórica tradicional, era considerada subversiva e punida com prisão. Apesar de toda a simpatia e gratidão de Franco por Hitler, a Espanha representou, durante a II Grande Guerra, a salvação para os fugitivos do ódio nazista. O governo espanhol fazia vista grossa para os refugiados judeus que entravam no país, recusando-se a devolvê-los à polícia francesa ou à Gestapo.

Samuel e Joel tinham credenciais da Cruz Vermelha Portuguesa e eram também funcionários da JOINT, uma entidade de assistência aos refugiados fundada pelo filantropo norte-americano Jacob Schiff. Assim que desembarcaram em Barcelona, vindos de Lisboa, os dois irmãos se hospedaram no Hotel Bristol, em plena Plaza de la Cataluña, que se transformou no ponto de encontro dos refugiados que conseguiam chegar à cidade.

Samuel tinha se graduado em Economia e era um diplomata nato, com enorme capacidade de relacionamento. Sua missão era contatar e fazer amizade com ministros, embaixadores, cônsules, chefes de polícia, superintendentes penitenciários e até mesmo diretores de hospitais. Joel, um assistente social na completa acepção da palavra, executava o trabalho de bastidores, percorrendo com seu carro os postos de fronteira, as prisões, as delegacias de polícia e os diversos campos de prisioneiros onde pudesse encontrar e socorrer fugitivos da barbárie nazista.

Os dois contavam com o apoio de um eficiente grupo de voluntários que tinham ajudado a organizar. Uma vez localizado um refugiado, era preciso retirá-lo da prisão e encontrar uma residência digna, roupas, alimentos, um emprego e, mais importante, documentos e vistos para que pudesse sair do país em segurança. De 1942 a 1945 Samuel e Joel conseguiram salvar aproximadamente 1.000 pessoas, entre as quais o Barão de Rothschild, que, no impressionante relato da escritora Trudy Alexi no livro «A Mezuzá nos Pés da Madona» (Editora Imago), «chegou com as roupas esfarrapadas, depois de cruzar os Pirineus andando junto com a família». Trudy, na época uma adolescente, conseguiu fugir pela escarpada fronteira franco-espanhola, tendo se radicado, posteriormente, nos EUA.

A escritora dedicou -se a entrevistar sobreviventes do Holocausto que, como sua própria família, haviam utilizado a rota Pirineus-Barcelona para alcançar a liberdade. É ela quem menciona, pela primeira vez, o nome Seguerra, com g, citado 14 vezes em sua obra. Outro livro, do escritor Haim Avni, publicado em hebraico e inglês, Spain, the Jews, and Franco, também se refere ao trabalho heróico dos dois irmãos. Para os homens solteiros, a salvação estava, muitas vezes, nas «noivas» portuguesas e espanholas que os irmãos Sequerra, com ajuda da coletividade, tratavam de arranjar.

Como «maridos», tinham o direito de conseguir os documentos necessários para a sonhada viagem do casal à América, destino preferido da maioria dos perseguidos. Muitos desses casamentos fictícios, redundaram em uniões reais e duradouras. Para outros, bastava ir à respectiva legação diplomática e conseguir passaportes e vistos para um país que os aceitasse. Com a progressão da guerra, contudo, estava ficando cada dia mais difícil obter esses documentos, especialmente para os judeus poloneses, que não eram reconhecidos como cidadãos pelo consulado do seu país.

Em alguns casos, quando havia risco iminente de deportação, o refugiado era internado às pressas em um hospital, onde um cirurgião amigo constatava a necessidade urgente de uma cirurgia para retirada do apêndice. Extirpava-se, na maioria das vezes, um órgão saudável, mas em contrapartida salvava-se uma vida. Quando se esgotavam as possibilidades de conseguir passaportes e salvo-condutos, os Sequerra encaminhavam os refugiados para Portugal.

Em Lisboa, a comunidade judaica havia montado uma estrutura para prestar-lhes auxílio médico e financeiro, além de assistência para a obtenção de passaporte português e um providencial visto para uma terra que os acolhesse. Além dos Estados Unidos, Marrocos, no norte da África, Cuba, México e Bolívia foram alguns dos poucos países que aceitaram receber refugiados, em um período em que as portas se fechavam para os judeus. Essa intensa atividade dos irmãos Sequerra em Barcelona não passou despercebida da Gestapo.

O escritório da Joint já havia sido transferido do Hotel Bristol para uma sede maior, no Paseo de Grácia. Uma noite, Samuel e Joel foram salvos pela própria dedicação ao trabalho. Com excesso de tarefas, tiveram de fazer serão, tendo sido surpreendidos pelo ruído de uma violenta explosão, que destruiu completamente seu carro. Tivessem saído na hora habitual, teriam sido mortos pela bomba-relógio que os nazis colocaram sob o veículo. A esse atentado e outros dois, Samuel e Joel não esmoreceram e levaram a cabo sua meritória atividade.

Com o fim da guerra, Samuel e Joel continuaram suas atividades comunitárias em Portugal, mudando-se para o Brasil nos final dos anos 50. Samuel, solteiro, foi para a iniciativa privada, sendo eleito Presidente do Cemitério Comunal Israelita, no Rio, cargo que exerceu com enorme competência e dedicação até sua morte, em 1992. Bem à entrada dessa necrópole, no bairro do Caju, uma placa em bronze presta uma merecida homenagem ao herói anônimo que nunca aceitou, em vida, qualquer tipo de honraria e que se encontra sepultado na própria entidade que dirigiu com extremo zelo. Seu irmão Joel, que veio com a esposa e os quatro filhos para o Rio de Janeiro em 1958, continuou desenvolvendo seu trabalho em entidades de auxílio aos refugiados, participando de projetos em prol dos judeus da Hungria, Egito, Romênia e Bulgária.

Em 1979, aos 66 anos, Joel Sequerra se aposentou, transferindo-se para Haifa com a esposa Simy. Naquela aprazível cidade israelense já vivia seu filho Arão, um brilhante arquiteto com Mestrado e Doutorado no Technion. Joel Sequerra curtiu seus últimos anos em Haifa, vindo a falecer aos 74 anos, em 1988 . Além do internauta Salomão, que me relatou, emocionado, a maior parte dessa comovente história, os irmãos Sequerra nunca gostaram de conversar com a família e os amigos sobre o que presenciaram durante os anos de chumbo da II Guerra e sempre recusaram receber qualquer tipo de homenagem, alegando, modestamente, que não haviam feito mais do que sua obrigação.

Uma frase de Joel, todavia, resume em poucas palavras o misto de esperança e amargura que o acompanhou por toda a vida: «eu gostaria de acreditar que esse tenha sido o último Holocausto».

 
Nelson Menda

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5 comments

  1. Emocionante relato el de estos hermanos, que merece la mayor difusión posible

  2. Nelson Menda, como sempre, soube transmitir, com sua prosa clara e enxuta, a emocionante trajetória de dois heróis do judaísmo. Parabéns a E-Sefarad pela publicação de história tão edificante.
    Cecilia (Rio de Janeiro).

  3. B»H

    Esta família cujos ancestrais foram vítimas da Inquizição, salvou vítimas do Shoah.
    Atos heróicos e de grande Guemilut Hassidim, como estes nos faz acreditar na predestinação de AM ISRAEL mais aínda!

    Bravo e-sefarad

  4. Excelente historia y gracias por difundirla y hacerla conocer !!

  5. ברוך השם – Graças a D´us

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